Le Scaphandre et le Papillon (dir. Julian Schnabel, 2007).
Le Scaphandre et le Papillon, Paris, Robert Lafont, 1997.
Assisti ao filme, não foi no cinema. Nos idos dos 2000 frequentava muito mais os cinemas de antanho do no mundo pós-pandemia em que se vive. Naqueles idos lembro-me do filme em cartaz, de optar por não vê-lo. Lembro igualmente que li uma crítica em um falecido jornal em que se falava de certo efeito claustrofóbico do filme - o escafandro.
O escafandro é uma imagem e uma metáfora que faz JeanDo a respeito da própria condição, sobre a qual trata o filme: um brutal acidente vascular, que em outra época da humanidade ou outro lugar social menos privilegiado o teria simplesmente fulminado. Não foi o caso: o avanço das ciências médicas, da saúde pública, no caso francês, das técnicas de ressucitação permitiram que ele sobrevivesse em um condição quase única: praticamente desconectado de todo corpo. Mas o corpo está ali, mesmo ausente, o que desdobra o problema cartesiano clássico da união substancial. Esse estar presente estando ausente daquele corpo é o escafandro. Pesado, inerte e onipresente em sua ausência.
O filme nasce de um livro que JeanDo escreveu nessas condições severas. Não vou descrever os detalhes da operação, complicada e exaustiva, por meio da qual ele dita o livro, mas se trata exatamente disso: um eforço físico de ordem metafísica, de alguém que perdeu o próprio corpo e, no entanto, permaneceu ligado a ele. A alma e o corpo só se comunicam com um custo enorme.
Há outro elemento que compõe o plano de fundo do livro. JeanDo, editor da revista Elle, um vencedor nato, figura do jetset internacional, preparava uma versão moderna de “O conde de Monte Cristo”, de Dumas. Dumas que, a propósito, foi grande escritor de sucesso e gênio do XIX, era uma pessoa negra. “O Conde de Monte Cristo” normalmente é visto como um livro sobre a vingança, uma vigança legítima e aguardada por seus leitores, pois se vinga uma injustiça extrema, absurda, obscena sofrida pelo protagonista, Edmond Dantès, absolutamente inocente. Não é, no fim das contas, um livro sobre vingança. É um livro sobre a redenção, uma redenção profunda e exigente, mas uma redenção possível entre os homens, a única redenção possível, a que lava todas as injustiças. Normalmente ela passa pela vingança.
O livro em projeto, a “versão moderna” do Conte de Monte Cristo, JeanDo não pôde escrever. Esse desacordo também está no imagem díspare de o escafandro e da borboleta. Borboleta, que é uma menção ao movimento que lhe resta, de uma pálpebra, também é menção ao que sobrou a ele de possibilidade de ação da alma sobre o corpo. A alma, frágil como uma borboleta, projeta as asas finíssimas sobre o corpo inerte, o escafandro. Comunica-lhe algo. Produz um efeito mínimo.
Por vias inesperadas acabei vendo o filme, depois de recusar vê-lo. Tenho a impressão de que vi com alguém, uma pessoa querida, que foi próxima, amada, e que estranhamente nos comunicávamos pelo filme, uma comunicação à distância, oblíqua. Uma asa, uma borboleta. Daí a menção. É um filme lindíssimo.
O filme não é exatamente sobre JeanDo, apesar de ser exclusivamente sobre ele, antes e depois do acidente vascular. O filme é sobre nossos limites, nossas deficiências e a experiência brutal, duríssima, que alguns fazem de reordenar repentinamente essas fronteiras, de aceitar recuar sobre si e naufragar nos estuários da solidão. A deficiência é sempre uma forma de solidão. Assim como a adversidade brutal, inesperada que uns e outros sofrem, a desdicha, as injustiças cabais da vida que despencam sobre nós. Como Edmond, na ficção, como JeanDo, na vida. Todos entendemos o sentido profunda dessa história: é também a história das nossas fragilidades antes e depois de se tornarem o que chamamos simplesmente de deficiência.
JeanDo afronta isso continuamente. Resiste. Com as asas frágeis de uma borboleta.
Um dos momentos mais pungentes do filme, e que condensa textos não exatamente contínuos do livro, completados com textos exclusivos do filme, é quando ele narra algo como seu dia de vida, entre o escafandro e a borboleta. Acorda de madrugada, e pronto “uma claridade leitosa invade o quarto na primeira manhã”, segue revisando mentalmente o texto que dará em seu livro, escolhendo as palavras, a cabeça pesadíssima (o escafandro), as digressões ao longo desse dia, o busto da Imperatriz (esposa de Napoleão III e protetora do Hospital de Berck), a cidade de Berck vista à distância, os outros pacientes e suas variadas dificuldades e limitações. Finalmente o passeio pela cinecittá, uma imensa varanda do Hospital Marítimo de Berck, e a conclusão desse arco narrativo (“e reconheça o dia entrando em explosões de confiança, esquecimento, amor,
ao fim da batalha perdida”) numa evocação em forma de ode ao farol de Berck, que se pode ver da cinecittá, que lhe lembra, de onde ele está, a um imensa distância do continente humano que ele deixou para traz em um naufrágio incrivelmente afastado da costa, sem remissão. O farol, no entanto, permanece à vista. Não é um consolo: é uma forma de liga-lo ao continente.
Coloquemo-nos, pois, sobre a proteção desse símbolo fraternal, antigo, robusto, reconfortante, o farol, que zela pelos marinheiros, pelos que fazem as grandes viagem marítimas, mas igualmente pelos doentes que o destino fez derivar até confins da vida.